Análise do poema “Canto do Campeiro” (Apolinário Porto Alegre) e de canções
tradicionalistas atuais
O poema "Canto do Campeiro", de Apolinário Porto Alegre, apresenta várias características do gaúcho tipificado. Ele é o campeiro, que anda pelos campos em cima de seu cavalo: “Avante, ginete/Dos campos do sul”. O animal assume posição de grande importância. O cavalo é uma extensão do homem valente, que não
teme o perigo: “Quem pode contigo,/que afeito ao perigo,/A sanha do inimigo/Não temes, taful?”. O herói de espírito livre, guerreiro bravo e injustiçado aparece nos versos: “O livre não teme/pesados grilhões;/Valente e bravos”. Elementos da indumentária do gaúcho típico são citados, como laços e bolas, fazendo referência, provavelmente, à boleadeira. Quando o poema diz: “Avante! Galopa” é a coragem de lutar por liberdade que está insuflando, porque o herói de guerra que a figura do gaúcho representa é sempre, como todo herói, um homem muito destemido. Além disso, o guerreiro arquetípico necessita de um ideal nobre. A nobreza de causa da luta é outro elemento do poema que está ligado ao gaúcho tipificado.
A guerra (provavelmente, referindo-se à Farroupilha), em que a participação do valente campeiro é muito importante, está nesse poema, assim como nas canções tradicionalistas atuais. O imaginário sobre o homem do pampa que viveu em um determinado tempo (época da Revolução Farroupilha), ligado ao ideal guerreiro em busca da liberdade, é cantado como se esse “gaúcho” ainda existisse como tipo social. As canções e poemas tradicionalistas falam de um tempo morto, pois a modernidade do século XX enterrou aquela antiga vida nos pampas, que foi substituída por relações sociais alicerçadas em outros valores. Esses
valores estão relacionados à industrialização, e, por mais que o homem da cidade necessite do resgate de tempos antigos de vida pastoril como uma forma de evadir da sua realidade, essa evasão precisa ser reconhecida. E não é o que acontece com os grupos tradicionalistas que, em seu discurso, indo muito além das canções repetitivas, afirmam que aqui no Rio Grande do Sul temos uma cultura superior e diferenciada dos demais estados brasileiros. Será que isso representa a verdade, ou não passa de uma ilusão compartilhada, fazendo parte de uma ideologia direcionada para garantir manutenção aos grupos que estão no topo do poder político e dominam a mídia gaúcha? E, se é verdade que essa cultura existe e é superior, não seria por terem vindo para cá um grande número de imigrantes alemães e italianos, que nada tem a ver com o histórico desse tão aclamado gaúcho herói?
A ideologia de que o Rio Grande do Sul é superior aos demais estados foi sendo formada no século XIX, como se vê no poema de Apolinário Porto Alegre. O seguinte trecho exprime bem esse fato: “Não dorme Rio Grande.../Erguido de pé;/Quem pode vencê-lo?/Se sabem temê-lo/Capaz de retê-lo/No jugo, quem é!”.
Todo passado é cristalizado com o passar dos anos e, de alguma forma, acaba idealizado de várias maneiras; porém, o passado rio-grandense é exaltado, atualmente, pelo tradicionalismo, como se fosse possível recriar, perfeitamente, costumes de uma época longínqua, acentuando esses costumes como legítimos. Ora, se é uma recriação, não poderá ser uma manutenção de tradições, pois, ao recriar tradições, elas se modificam e perdem seu caráter original, naturalmente, por meio da ideologia vigente no tempo atual.
Com relação às músicas escolhidas, foram encontrados diferentes elementos que também estão no poema. Isso prova que o tradicionalismo gaúcho é arcaico, ligado ao Romantismo na literatura, que foi substituído pelo Realismo há mais de cem anos.
Na comparação entre o poema e a canção “Campereando”, percebe-se muita semelhança na descrição do gaúcho: o “campeiro”. Destaca-se em ambos a integração entre homem e animal, representado pelo cavalo. Por exemplo, no trecho da canção: “Vou eu a cavalo, encurtando o pago, campeador!”. O espaço, o pampa, é o local onde o gaúcho típico fazia suas invernadas, solidário aos outros homens. Essa solidariedade entre peões também aparece: “E um coração solidário”. A figura do homem livre e sonhador, que busca esses ideais no lombo do cavalo é exaltada nos versos: “Sempre que um sonho se planta/Tenho com quem conversar/Ando de laço atorado/[...]Talvez a buscando horizontes/Eu mude a cara do tempo”.
A canção “Criado em Galpão” também apresenta vários elementos do gaúcho tipificado, como chimarrão, apego a terra, o galpão, a bombacha, as esporas, a natureza representada pelo campo, coragem e valentia. Novamente, como na outra música, os versos estão no presente, mas remetem a um tempo perdido. Esse homem, criado em galpão, que usa bombacha e trabalha na lide campesina, é um tipo praticamente inexistente na sociedade urbana de hoje.
Campereando (Mauro Moraes)
Na charla dos milongueiros
Contraponteando o silêncio
Eu sempre digo o que penso
Quando o violão me golpeia
E me garanto por terra
Cantando coisas do campo
Sem molestar o quebranto
Dum bordoneio queixoso
Daqueles do olhar lacrimoso
Quando voltamos pra dentro...
Campereando vou, campereando, vou
Vou eu a cavalo, encurtando o pago, campeador!
Guardo nas léguas dos olhos
Remorsos nunca esquecidos
Um catre "bueno" curtido
Pros dias que não enfrento
Tropilhas do mesmo pelo
Parceiras das invernadas
Quando amadrinho quarteadas
No pampa do meu Estado
E um coração solidário
Velando à luz dos luzeiros...
Campereando vou, campereando, vou
Vou eu a cavalo, encurtando o pago, campeador!
Sabe comadre milonga
Fulana nem sei das “quanta”
Sempre que um sonho se planta
Tenho com quem conversar
Ando de laço atorado
Marcado pelo meu jeito
Quando a dor abre o peito
E o vento nada responde
Talvez buscando horizontes
Eu mude a cara do tempo...
Campereando vou, campereando, vou
Vou eu a cavalo, encurtando o pago, campeador!
Criado em Galpão – Grupo Os Serranos
Nasci na pampa azulada
e da minha terra eu sou peão
estampa de índio campeiro
que foi criado em galpão
gosto do cheiro do campo
e do sabor do chimarrão
e de dobrar boi brabo a pealo
nos dias de marcação
Meu sistema de gaúcho
é mais ou menos assim
uso um tirador de pardo
arrastando no capim
uso uma bombacha larga
com feitio do melhor pano
e um "trinta" ao correr da perna
com palmo e meio de cano
Gosto de fazer um potro
se cortar na minha chilena
pra sentir o sopro do vento
me esparramando a melena
Crinudo que sacode arreio
engancho só na paleta
pois as esporas que eu uso
têm veneno na roseta
tenho um preparo de doma
trançado com perfeição
pra fazer qualquer ventena
saber que é este peão
O dia em que eu não puder
agüentar mais o repuxo
talvez o Rio Grande diga
lá se foi mais um gaúcho
mas enquanto eu tiver força
laço, domo e tranço o ferro
e na invernada do mundo
mais um rodeio eu encerro
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