As Cartas Portuguesas, de
Mariana Alcoforado
Por Iago
Möller e Vanessa Schneider
Uma obra bem explorada não vem de
mera minuciosa leitura. Aliás, uso aqui a palavra “explorar” de forma
proposital e bem intencionada, já que uma obra nunca é escrita na inexistência
da vida, da terra e do tempo: para conhecer uma obra com verdadeira
profundidade, é preciso conhecer as mãos e a o lugar de onde ela vem. Com
“Cartas Portuguesas”, supostamente escritas por Mariana Alcoforado durante o
século XVII, não poderia ser diferente.
Talvez o uso de “supostamente” soe
ousado, mas é o que teorizam especialistas: que a freira que narra a história,
apesar de realmente ter existido entre 1640 e 1723 e vivido em algum convento
português, jamais tenha escrito tais cartas. Em contrapartida, as entrelinhas
de tal romance epistolar nos dão um interessante retrato da sociedade
portuguesa da época.
Em resumo, as cinco cartas narram,
da perspectiva da freira, o romance exacerbado vivido com um oficial francês, Noel
Bouton de Chamilly. Bem, talvez não seja correto colocá-los em um mesmo plano,
pois as cartas partem exatamente da distância entre os sentimentos dos dois.
Enquanto Mariana vive e sofre de forma intensa tal amor, o oficial não possui
sentimentos recíprocos, confessando inclusive possuir uma amante na França em
uma de suas respostas. A partir disso, Mariana persegue os sentimentos que a
aflingem. Como ela esclarece em uma das cartas, apesar de em certos momentos
arrepender-se de seu amor, se diz mais feliz tendo provado desse sentimento do
que se jamais o tivesse gozado. O que segue são hipérboles, repetições,
contradições e sentimentos afins que vão sendo trabalhados pelo tempo, até o
momento em que na quinta e última carta ela dá seu adeus ao amado, tornando
explícito o desprezo que passa a sentir pelo mesmo e por si, por tanta
ingenuidade em lidar com os seus sentimentos.
Note: é curioso o fato de que, como pouco acontece na história, um nobre
e militar tornou-se coadjuvante na história de uma freira. Mais curioso ainda
se percebemos que as histórias de guerra de um homem não se tornaram mais
importantes que as hipérboles e contradições de uma mulher apaixonada.
Por falar em hipérboles e contradições, ficam claras as características
da Escola Barroca Portuguesa na obra. A mais marcante é o constante duelo entre
a razão e a emoção. Nessa luta, Mariana se desespera, se contradiz, se
confunde. O duelo aqui não é apenas entre a mente e o coração, mas sobre as
coisas que vem de seu interior e a cultura a qual estava submetida. Seguindo
essa linha de pensamento, é correto também dizer que há duas Marianas presentes
no texto: a Mariana freira e, principalmente, a Mariana mulher.
E aí, quando falamos nessa separação das duas Marianas, caímos novamente
no papel que a mulher exercia (ou que era obrigada ou educada a exercer) na
sociedade da época. Monica Rector, em sua obra “Mulher: objeto e sujeito da
Literatura Portuguesa”, defende que a “através
dos séculos, a mulher tem sido calada e representada sob a ótica masculina.
Essas representações, além de não coincidirem com aquilo que é vivido e sentido
pelas mulheres, apontam para um dualismo entre homens e mulheres, cabendo ao
feminino os conteúdos ligados à irracionalidade; ao masculino, os que tangem a
racionalidade”. Isso nos leva a pensar que a possibilidade das cartas nunca
terem sido escritas por Mariana, mas sim pelo escritor francês Gabriel de
Guilleragues, não é assim tão absurda uma vez que os papéis de ambos eram bem
distintos na sociedade.
Ela diz também que a mulher ideal, pregada pela sociedade sob forte
influência dos costumes cristãos (já que Portugal sempre foi um país
extremamente católico), acaba por se tornar uma “mulher-deusa”, uma conduta
exemplar, uma vida livre de “pecados”... Os destinos para toda e qualquer
mulher eram sempre os mesmos: ou a moça casava-se ou virava freira. Na fuga
deste padrão, as mulheres desviantes recorriam à prostituição. Tal imagem era
tão forte que vários estudiosos garantem em seus estudos que os diários e
relatos da época não podem nem mesmo ser usados como “verdades” ou retratos da
real vida daquelas mulheres, mas sim do perfil e do estilo de vida que elas
deveriam levar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário